Tratamento de dor crônica, cannabis medicinal e a abordagem multimodal

A dor crônica afeta milhões de pessoas no Brasil, sendo uma das condições mais debilitantes que um ser humano pode enfrentar. Estima-se que cerca de 45% da população brasileira sofra de algum tipo de dor crônica, de acordo com estudos recentes, um número muito acima da média mundial. Esse cenário alarmante exige novas abordagens terapêuticas que vão além dos tratamentos convencionais, e uma das alternativas promissoras é o uso da cannabis medicinal dentro de uma abordagem multimodal. Mas o que isso significa na prática? Vamos explorar como essa abordagem pode oferecer um alívio mais completo e eficaz.

 

O que é a dor crônica? 

A dor crônica é uma condição que persiste por mais de três meses, podendo surgir de diferentes causas, como lesões traumáticas, cirurgias, condições degenerativas ou até fatores psicológicos. Ela varia em intensidade, desde dores leves que não afetam tanto o dia a dia, até dores extremamente incapacitantes que prejudicam a qualidade de vida em aspectos físicos, emocionais e sociais.

A grande dificuldade no tratamento da dor crônica é que ela é multifacetada. Não é apenas uma sensação física; é uma experiência subjetiva, muitas vezes difícil de descrever. Além disso, ela impacta diretamente a capacidade de uma pessoa realizar atividades simples, desde o autocuidado até o trabalho e os relacionamentos pessoais.

 

A abordagem multimodal no tratamento da dor crônica

A abordagem multimodal é uma estratégia de tratamento que combina diferentes modos de intervenção, reconhecendo que a dor crônica envolve mais do que apenas um componente físico. Segundo o Dr. Ricardo Ferreira, especialista em dor crônica, essa abordagem é fundamental para garantir que o tratamento seja eficaz e personalizado. O conceito foi originalmente proposto nos anos 1960 pelo Dr. John Bonica, que percebeu que aliviar a dor do paciente não era suficiente se outros aspectos de sua vida não fossem levados em consideração.

Esse tipo de tratamento é apoiado por importantes associações internacionais, como a Associação Americana de Dor (AAPM) e a Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED), que defendem o tratamento multimodal biopsicossocial. Essa abordagem engloba três pilares:

  • Biológico: Envolve tratamentos farmacológicos e não farmacológicos para atuar diretamente na fisiopatologia da dor, como o uso de ativos da cannabis, opioides, antidepressivos e terapias físicas.
  • Psicológico: O empoderamento do paciente é essencial. O paciente precisa entender sua condição e participar ativamente do tratamento, não apenas delegando-o ao médico. Técnicas como biofeedback ajudam o paciente a identificar gatilhos de dor no dia a dia e a adotar comportamentos mais saudáveis. Além disso, é necessário manejar sintomas psicológicos associados, como ansiedade, depressão e insônia, que afetam grande parte dos pacientes com dor crônica intensa.
  • Social: O suporte da família, amigos e terapeutas também é importante. A incorporação de hábitos saudáveis, como a prática regular de atividades físicas, é fundamental para melhorar a resposta ao tratamento e a qualidade de vida.

 

Benefícios da abordagem multimodal no tratamento de dor crônica

A abordagem multimodal traz diversos benefícios, como maior eficácia no controle da dor e um vínculo mais próximo entre médico e paciente. Esse engajamento fortalece a relação, fideliza o paciente e contribui para um tratamento mais sustentável a longo prazo.

Um ponto interessante da abordagem multimodal é o uso racional dos medicamentos. No início, o tratamento pode envolver múltiplas classes de medicamentos (como antidepressivos, opioides e canabinoides). Contudo, à medida que o paciente adota hábitos mais saudáveis e responde melhor ao tratamento, é possível reduzir ou até descontinuar o uso de alguns desses medicamentos, promovendo uma desprescrição controlada.

A abordagem multimodal é como um quebra-cabeça, em que cada peça – medicação, terapia física, atividade física e suporte psicológico – se encaixa para proporcionar uma melhora global no quadro do paciente, permitindo que ele saia da inércia e adote um estilo de vida mais saudável e ativo.

Quando falamos de tratamentos farmacológicos, o objetivo principal é modular as vias de transmissão da dor, tanto no nível ascendente quanto descendente. As vias ascendentes, responsáveis por levar o estímulo doloroso à área cortical, são influenciadas por mediadores como a substância P, prostaglandinas e glutamato. Já as vias descendentes atuam modulando a intensidade da dor, com mediadores como serotonina, dopamina e GABA.

Nesse cenário, os canabinoides desempenham um papel fundamental. Eles atuam modulando tanto a via ascendente, inibindo a transmissão de estímulos dolorosos, quanto a via descendente, tonificando a capacidade moduladora de suprimir a dor. Em especial, o sistema endocanabinoide se destaca como um regulador natural da percepção da dor, humor, sono e inflamação. Fitocanabinoides como CBD e THC interagem com esse sistema, potencializando a sua ação moduladora.

 

O papel da Cannabis medicinal no tratamento da dor crônica

A cannabis medicinal, com seus canabinoides como o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol), tem se destacado como uma ferramenta valiosa no controle da dor crônica. Os canabinoides interagem com o sistema endocanabinoide do corpo, ajudando a regular processos como a resposta inflamatória e a percepção da dor. Estudos clínicos sugerem que a cannabis medicinal pode ser eficaz para tratar diversos tipos de dores crônicas, como as relacionadas à esclerose múltipla, artrite, fibromialgia e neuropatia.

O CBD, por exemplo, tem ação comprovada na supressão de citocinas pró-inflamatórias, especialmente pela interação com o receptor CB2. Além disso, o CBD modula a transmissão do impulso doloroso ao interagir com receptores como TRPV1 (valinoide), glutamato e TNF-alfa. Ele também aumenta a disponibilidade de GABA e serotonina, contribuindo para uma resposta moduladora da dor mais eficaz.

Já o THC, embora também tenha efeitos anti-inflamatórios, age de maneira diferente. Sua principal ação está relacionada ao receptor CB1, promovendo a liberação de dopamina e causando o que chamamos de efeito dissociativo emocional. Esse efeito altera a percepção da dor, fazendo com que o paciente sinta menos sofrimento.

Além disso, ao ser integrada em uma abordagem multimodal, a cannabis medicinal pode potencializar os efeitos de outras terapias, reduzindo a necessidade de opioides e minimizando os efeitos colaterais associados a tratamentos tradicionais. Contudo, é fundamental que o tratamento seja personalizado, levando em consideração as necessidades individuais de cada paciente, sua tolerância aos medicamentos e as comorbidades envolvidas.

 

Um caminho para o alívio

A dor crônica é uma condição que vai muito além da simples sensação física, exigindo uma abordagem abrangente e multifacetada. A combinação de tratamentos, como o uso de cannabis medicinal dentro de uma estratégia multimodal, pode oferecer um alívio significativo para milhões de pessoas que sofrem com essa condição. O mais importante é reconhecer que cada paciente é único e que o tratamento deve ser adaptado às suas necessidades e circunstâncias.

 

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Este artigo é voltado exclusivamente para médicos com caráter educativo. Sendo você um paciente ou interessado no tema, reforçamos que este artigo é puramente informativo e não substitui o aconselhamento médico profissional. Sempre consulte um profissional de saúde para discutir suas opções de tratamento.

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